Filosofias Salgadas

Devaneios, loucuras, filosofias, chinelagens, lariras, badernas, balbúrdias e tudo mais que o povo gosta, mas sempre usando a cabeça, por que aqui ninguém usa chapéu!

sábado, 23 de junho de 2018

Só futebol...

Ele nasceu no Kosovo.

Sua família percorrera caminhos tortuosos, passando por diversas fronteiras até alcançar a tão sonhada paz.
Aliás, paz não, distância da guerra, já que um refugiado nunca encontra realmente a paz. Chegados à Suíça, seus pais e ele conseguiram sobreviver devido ao acolhimento recebido de alguns, da solidariedade de outros, do trabalho arranjado aqui e da força de vontade característica daqueles que fogem das contendas que vitimam seus irmãos.

Anos depois, já homem feito. Realiza uma façanha, com uma multidão espalhada pelo mundo assistindo.

Ele chegou até ali lutando. Contra a pobreza no início. Contra o sistema que o hostilizava depois, e enfim contra os adversários no campo. Mas para ele a luta era normal. Desde pequeno sabia o sabor amargo da derrota. Nunca se deixou abater por uma porta fechada ou um "não" à queima roupa. Sua história mostrava que ser forte era a única saída para continuar vivo.

Eles estavam sendo vencidos. A derrota caminhava a passos largos na sua direção. E de repente, parecendo uma dádiva divina, um pequeno milagre, ele recebeu a oportunidade da virada. De frente para a vitória, carregando toda a carga de uma nação não reconhecida, carregando nas costas a sua história de quedas e novos começos, ele conseguiu. Triunfou.

Não sou um especialista em geo-política. Nem tenho a pretensão de me colocar do lado da Albânia ou da Sérvia na questão da Guerra do Kosovo.

Mas este gol... Esta comemoração...

Uma explosão de uma vida inteira (algumas vidas, na verdade) colocada em um gesto de 2 segundos.

As mãos entrelaçadas sobre o peito em alusão às duas águias negras presentes na bandeira Albanesa.

Um gesto tão carregado de sentido, que eu não conseguiria descrever em duas mil páginas.

O que te faz chorar? O que te emociona no nosso mundo?

Hoje eu estava lendo uma matéria sobre essa comemoração de gol para a minha esposa e não consegui terminar nem o segundo parágrafo. As lágrimas brotaram apesar do meu esforço para manter a aparência de distanciamento e insensibilidade. Minha voz simplesmente se recusou a sair e eu não fui capaz de acabar a leitura.

O que te emociona?

Enquanto ela lia o final da história, eu pensava em tudo o que se passou do momento da saída da família do Kosovo até aquele chute. Pensei na Clara, no meu pai, na família caminhando a esmo sem a certeza da próxima refeição, na vergonha do não pertencimento a lugar nenhum...Toda essa energia acumulada por anos, despejada em uma bola. Um chute. E a emoção.

Um amigo me falou na sala dos professores:
-Não sei o que tu vês no futebol... É só um jogo. A Copa faz as pessoas deixarem de ver o que é importante!

O que é importante?

Um jogo nunca é só um jogo se nós sabemos ler nas entrelinhas.


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